Fabinho
Eu não quis reconhecer o Fabinho quando ele andava pela rua devagar, raspando a sola no concreto, as pernas retas, sem flexão, os ombros projetados pra frente. Eu não quis reconhecer o Fabinho quando ele tinha aquela mirada vítrea, mendigando cigarro. Eu não quis reconhecer o Fabinho, cabelo enrolado caindo no rosto, bigode fino de amigo da onça, ventre protuso no corpo magro e incongruente com a terceira década da vida.
Tudo nele era incongruente com a terceira década da vida e justamente por isso eu evitava reconhecer o Fabinho.
Quando conheci o Fabinho eu conseguia me ver no olhar dele sem me assustar com meu espectro. Eu desviava dele para não ver o que de mim nele se perdeu. Eu desviava para não dar cigarro, mas também desviava para não ser complacente com o sentimento de nulidade perante a contigência que sustenta de pé a coisa mentirosa que nos enverniza com valor de pessoa. Desviava para não derrubar a coroa misericordiosa de altruísta que me ornava a fronte. Desviava de modo a não encarar as ravinas que a angústia de também poder me perder a qualquer momento me escavou nas costas. Eu ainda precisava fazer sentido, ser respeitável. Habitar três dimensões de um eu impossível - a dos meus olhos, dos olhos do outro e dos meus olhos nos olhos do outro.
Fabinho me olhava como se tivesse atravesado o espelho. Eu apressei o passo a cada vez que vi Fabinho porque a gente não suporta encarar o que a vida é capaz.
Quinze agostos antes eu conheci Fabinho já adulto. Eu frequentava a quadra da praça a arremesar sozinho a bola de basquete desde a cabeça do garrafão fazendo lances livres do jogo imaginário no qual eu costumava perder pra mim mesmo. Ainda faço isso, feito ritual, quando a praça é vazia - a não ser pelos ratos, demônios e corujas. O placar é cada vez mais largo em meu desfavor, mas não deixo de arremesar vez após vez, mesmo que cada vez mais me doam os cotovelos e todas as articulações, incluindo as que me são ignoradas. Quando Fabinho jogava, ele sorria, pulava. Movia-se como uma alma que não se importava com o que podia ou não podia um corpo.
Não conversávamos diretamente - só pela bola. Éramos como crianças e o pedido de permissão pra jogar era simples, reto e suficiente. O cimento, o ferro, o laminado - o quique, o aro, a tabela. A esfera inflada servindo de instrumento de percussão e o silêncio instaurado pela suspensão do tempo quando ela viajava das mãos ao objetivo. Assim jogamos. E ao não jogarmos mais, Fabinho seguiu com seu corpo pelos anos, anos em que morei fora e Fabinho ficou. Sem ter mais o basquete, a alma seguiu a não se importar com o que podia ou não podia seu corpo. Quando voltei, o vi, mas não fui visto. E me vi. E mudei de calçada.
Um dia eu o chamei pelo nome: “Fabinho! A gente jogava basquete na praça uns anos atrás!”.
“É? Tem cigarro?”.
Eu tinha.
Mas Fabinho me fazia lembrar que fiquei quinze anos sem fumar, e voltei, depois do casamento. E continuei depois da separação. E depois da paternidade. E depois dos 40. E a cada dia, cada semana, cada mês, cada ano, mais uma promessa adiada. Um ciclo de punipensa, de endividamento e autocalote, de arrendamento sem lastro algum do futuro em forma de nuvem e fumo. Fabinho me fazia lembrar do quanto que deixei de ser e do que podia ter sido.
Há quem chame o orgasmo de “pequena morte”. Talvez faça sentido chamar o cigarro de “pequeno suicídio”. Um suicídio que não é meramente pequeno, como também lícito.
Não me ufanava de ser o normal. Ao contrário: me ressentia dele não me ver, reconhecer. Minha ausência no olhar dele me diminuía, como se fosse um promontório, aislado, louco. Bastava lhe acender o cigarro pra que ele se afastasse, marchando curto, olhar íctio, traspassante, aura de Clozapina. Sorria raramente. Quando o fazia, era sem causa externa e só movendo um canto de boca. Fazia parecer no meu delírio que se imaginava a limpar as tripas de um animal doméstico com uma faca de cozinha sem fio. Meu olhar batia e voltava como um arremesso mal calibrado golpeando a tabela. Voltava amassado, torto, pronto para errar tantos arremessos quanto necessários até aprender a errar.
Não sei se aprendo.
Em janeiro minha avó esteve entre a vida e a morte. Em breve estará de novo. Meu irmão veio de longe, se despedir. Meu melhor amigo sentou para beber comigo, honrando a vida. Minha avó ainda vive, foi e voltou. Foi e voltou muitas vezes em cem anos. Não se vive muitos anos sem ir e sem voltar muitas vezes. Um dia eu estarei entre a vida e a morte. Estamos sempre entre a vida e a morte. Não se vive muitos anos sem aprender a não aprender a errar.
Não se vive muitos anos sem aprender a morrer.
Não se vive muitos anos.
O defeito etílico de meu amigo morreu, minha avó não. Muitos dos meus defeitos não morreram. Mas bebíamos no jardim rente ao frontispício do prédio na mesa de concreto, feita para peças de dama ou xadrez. Eu me vestia como um cruzado ele, com uma longa veste e capuz pretos. Rimos.
Rimos alto.
Enloquecer é virar ilha. Em janeiro o calor do Rio é absurdo. Diz-se que em poucos anos o nível dos oceanos fará desaparecer as ilhas do pacífico e criará tantas outras onde agora é terra. O absurdo faz rir. O absurdo nos expulsa de casa. O absurdo nos torna sujeitos. O absurdo nos torna parentes.
Em pouco tempo esse mundo deixará de ser dividido em cinco continentes para ser dividido em milhares de ilhas. Um mundo de ilhas dentro de poucos anos e estamos aqui, olhando e copiando tendências porque se nos assemelham a bons pedaços de isopor.
E agora, tenho um filho.
Enquanto eu e meu amigo tomamos cerveja, Fabinho passava com seus passos curtos, com a ponta dos dedos nos ferros pretos da grade externa do prédio feito reverberasse teclas de vibrafone. Projetava o olhar mesmo com a cervical curva, como se pela esguelha cuidasse em não ser arruinado pela maré. Eu não queria ser avistado. Não queria ser interrompido. Não queria ser tragado. Não queria ser lançado dentro de nenhum absurdo. Queria somente dançar em silêncio minha dança macabra na borda que nos distingue.
Mas Fabinho me viu. Acho que viu terra. Meu cigarro tinha acabado.
“Jogamos na praça década e meia atrás. Agora deambula errático, opaco, vazio, triste, perdido. E mendiga cigarros. Evite cruzar o olhar!” - Eu disse pro meu amigo.
Mas Fabinho estacionou, mesmo sem convite.
“Tem cigarro?”
- Tenho não, Fabinho.
“Então toma. Pode pegar. Toma logo, dois. Um pra você, um pro seu amigo”.